Dentre os municípios pernambucanos, em que as mais diversas manifestações populares tomam vida e corpos, Goiana, a cidade mais populosa da Zona da Mata Norte deste estado, é culturalmente reconhecida pelas tradicionais Bandas Filarmônicas (as Bandas Saboeira e Curica são registradas como Patrimônio Vivo de Pernambuco) e pela abundância de caboclinhos. Não por acaso, é também chamada de “a terra dos caboclinhos”. A significativa presença dessa manifestação popular na região remete à época da colonização, em que se sucederam a formação de aldeamentos jesuíticos e políticas indigenistas (embora o surgimento desses grupos não sejam unicamente explicados por esse fato histórico). A associação Caboclinho União Sete Flexas de Goiana, fundada em 25 de março de 1991, é o primeiro grupo de caboclinho do município registrado como Patrimônio Vivo de Pernambuco (2021), e traz, em sua história e nos elementos que o compõe e evoca, referências da tradição e de práticas culturais e religiosas que remontam à presença indígena no estado e no país.
O responsável pela fundação do emblemático grupo foi Nelson Cândido Ferreira, também conhecido como “Nelson dos Caboclinhos” ou “Ferreirinha”, nascido em 21 de setembro de 1941, no Engenho Conha, Zona Rural de Água Preta, Mata Sul de Pernambuco. Diferente de como costuma ocorrer nas manifestações populares, em que os membros têm contato com a brincadeira ainda criança, Seu Nelson só começou a desfilar nos caboclinhos a partir dos 27 anos de idade. Mas isso não o impediu de ser um dos mestres de caboclinho mais renomados do Estado. Aos 33 anos, tornou-se membro do Caboclinho Caetés de Goiana, fundado em 1904. A inserção no grupo fez com que Mestre Nelson se envolvesse e se encantasse com o caboclinho, e todo ritual que envolve esse bem cultural para o resto de sua vida. Aos 50 anos de idade, após, segundo seu relato, ter recebido uma mensagem do Caboclo Sete Flexas, entidade indígena, que teria lhe dado a missão de criar seu próprio brinquedo, Mestre Nelson fundou o União Sete Flexas de Goiana.
A agremiação, cujas cores oficiais são o vermelho, o preto e o branco e cujo símbolo é um indígena com sete flechas entrecruzadas, chega a reunir 120 brincantes anualmente durante o Concurso de Caboclinhos organizado pela Prefeitura do Recife, no qual participa desde 1994, quando se registrou na Federação Carnavalesca do Estado de Pernambuco. Alguns campeonatos já foram alcançados, como em 1998 e 2004 (Grupo II) e Vice-Campeonato do grupo I em 2008. Em 2016, foi campeão no grupo especial do Concurso de Caboclinhos organizado pela Prefeitura do Recife, ano que também conquistou o Prêmio Ariano Suassuna de Cultura Popular e Dramaturgia, lançado em 2015 pelo Governo do Estado, por meio da Secult/PE e da Fundarpe.
O grupo possui loas próprias, as quais muitas foram compostas e cantadas pelo Mestre Nelson, registradas em abril de 2008 no CD “Caboclinho União Sete Flexas”. A tradição do Caboclinho está fortemente vinculada ao universo da Jurema, um complexo religioso que se originou dos povos indígenas localizados no Nordeste e está “fundamentado no culto a entidades que podem ser denominadas, conforme sua categoria, de ‘encantados’, ‘mestres’, ‘caboclos’ ou ‘reis’”. O União Sete Flexas de Goiana recebe esse nome, portanto, em homenagem ao caboclo de seu fundador, Mestre Nelson. Em Goiana, um dos momentos mais expressivos do vínculo dos caboclinhos com a Jurema é durante a Caçada do Bode. A Caçada ocorre na madrugada do domingo de Carnaval, ciclo festivo anual no qual as agremiações de caboclinhos estão inseridas (as apresentações ocorrem principal, mas não exclusivamente, no Carnaval). Emblemática e bastante significativa também por ser o único momento em que os caboclinhos vão a público sem estarem se apresentando para uma comissão julgadora. Ela representa uma convergência das tradições dos terreiros de Umbanda, em que há o sacrifício do bode, e das caçadas que remetem à memória dos nativos. Na ocasião, há um cortejo pelas ruas da cidade durante o qual é encenado o momento em que os indígenas retornam da caça. O bode, oferenda para os caboclos, é sacrificado dias após o desfile, e sua carne é distribuída entre os membros do grupo.
Com o falecimento de Mestre Nelson em 04 de novembro de 2019, aos 78 anos de idade, Geane Gonçalves Ferreira, médium e uma de suas filhas, assumiu a presidência da agremiação da qual também é estilista. Outros filhos e netos do fundador também integram o grupo, mantendo sua memória e ensinamentos vivos. Na sede da agremiação, em Goiana, há oficinas e atividades que corroboram com a perpetuação do legado de seu Nelson e da tradição do caboclinho, agregando jovens e adultos para a manifestação. A forte marcação das pisadas, guiadas pelo compasso da preaca (arco e flecha de madeira), é destaque do União Sete Flexas de Goiana, que, com suas plumas e penas esvoaçantes, deixam também uma forte marca nos sentidos de quem os assiste.