A Empresa Brasileira de Hemoderivados e Biotecnologia (Hemobrás) completa 15 anos de criação, em dezembro, sem ter cumprido seu propósito de tornar o País autossuficiente na produção de alguns medicamentos hemoderivados. Sem qualquer produção própria na fábrica instalada em Goiana (distante 63 km do Recife), o Brasil continua à margem do seleto grupo de duas dezenas de países no mundo que fracionam plasma para produzir hemoderivados em escala global e com tecnologia de ponta. Sem produção em território nacional, o governo brasileiro continua gastando R$ 1 bilhão por ano em importações. É quase o equivalente a construir uma Hemobrás por ano, que custou R$ 1,2 bilhão ao governo federal.
Se a história da “estatal do sangue” virasse uma série de TV seria uma daquelas com um sem número de episódios e novas temporadas. Em alguns momentos, a realidade superou a ficção, quando maços de dinheiro foram arremessados da janela de um apartamento no Centro do Recife, durante a Operação Pulso, deflagrada pela Polícia Federal em 2015, que investigou superfaturamento e fraudes em licitações. Também teve o episódio do Ministro da Saúde da gestão Temer, Ricardo Barros, que queria levar a produção de hemoderivados para o Paraná.
O conflito mais recente está trazendo prejuízos à saúde pública no País. Em 2017, o Ministério da Saúde (MS) publicou uma portaria retirando da Hemobrás a responsabilidade de gerir o processamento do plasma. Quando fracionado, o plasma excedente (que não é utilizado nas transfusões de sangue) é usado na fabricação de medicamentos usados no tratamento de hemofilia, hemorragias, queimaduras graves, câncer, Aids e pessoas com baixa imunidade. O plasma colhido pela estatal nos hemocentros do Brasil era fracionado pela companhia francesa LFB, mas, por conta de restrições da Anvisa, está impedida de comercializar no País. Com a portaria do MS e a saída da empresa, a Hemobrás passou apenas a armazenar o plasma.
Desperdícios Sem nova empresa para fracionar a matéria-prima, bolsas de plasma estão perdendo a validade e sendo descartadas. Segundo a Hemobrás, 615 mil bolsas estão armazenadas na empresa com data de vencimento entre 2019 e 2021. Até agora, 100 mil já se perderam e outras 83 mil podem ir para o descarte até o fim deste ano. Dependendo do tempo de armazenamento, o plasma não serve mais para a produção de medicamento e precisa ter outra destinação, como a produção de reagentes laboratoriais (de menor valor agregado), desperdiçando uma matéria-prima que, no mercado internacional, chega a custar US$ 70 o litro.
Não bastasse o material recolhido e que está se perdendo dentro da Hemobrás, ainda existe a perda do plasma excedente armazenado nos hemocentros, que deixou de ser recolhido pela estatal, por determinação do Ministério da Saúde. “Desde 2016 a Hemobrás parou de recolher o plasma para a indústria. Como não temos espaço suficiente para armazenamento, a única solução é o descarte. De acordo com nosso arquivo, tivemos entre 2016 e 2018 uma média de 250 mil unidades de plasma coletadas e uma média de descarte de 108 mil unidades”, lamenta a Diretora de Hemoterapia da Fundação Hemope, Anna Fausta Cavalcante.
O não recolhimento do plasma também está impactando o abastecimento da rede nacional de saúde com hemoderivados em Estados como São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul. Em Pernambuco, a Secretaria Estadual de Saúde afirma que “está abastecido dos sete medicamentos hemoderivados repassados pelo Ministério da Saúde ao Hemope. Para a Farmácia de Pernambuco, é repassada apenas a imunoglobulina, que tem tido entrega irregular pelo MS nos últimos trimestres. Mesmo assim, por estar fazendo o uso consciente, ainda há estoque do insumo”.
Na tentativa de resolver a situação, o Ministério Público Federal no Estado (MPF-PE) expediu recomendações para que a Hemobrás contrate uma empresa para fracionar o plasma armazenado na fábrica em Goiana e que o MS devolva à estatal a gestão do plasma.