De acordo com a Confederação Nacional dos Municípios, seis em cada 10 cidades estão, a partir deste domingo, em desacordo com a Política Nacional dos Resíduos Sólidos
Nas sacolas, ratos. Satisfeitos, os caçadores fazem fila à espera da oportunidade de trocá-los. Um a um, depositam os bichos numa balança e recebem peso equivalente em carne bovina de qualidade. Estamos na Associação Comercial de Timbaúba, há 20 anos. Em três dias, a população retirará 366 roedores de circulação do município, infestado deles. Pouco mais de 123 kg de ratos depois, o caso será esquecido por aqueles que demonstraram asco ou compaixão pelos que dependiam da campanha “Rato no saco, filé no prato”, em outubro do ano de 1994.
A polêmica teve início semanas antes, com o rosto de Damião José da Silva estampado em páginas de jornais de todo o país. Capturava o bicho entre sacos plástico e papelões, tirava os pelos e comia. Vinte anos depois, os ratos se foram, mas não Damião, ainda morador do lixão de Timbaúba. O Brasil de esquerdas e direitas esqueceu de empurrá-lo para frente.
O homem de rosto castigado e equilíbrio sofrido parou de contar a idade aos 60. Não se lembra de muita coisa. Passa a manhã catando o que pode render algum dinheiro ou saciar a fome por entre os restos descartados pela população local. À tarde, normalmente cede ao sono cansado ou a desmaios embriagados. E assim vai levando a vida, ao lado da esposa, Maria Madalena da Conceição, 50.
Ele lembra bem do episódio, rindo. “Não só eu comia rato. Muita gente fazia também, mas isso era no outro lixão daqui, de Sapucaia. Víamos a cabeça dele mexendo e dávamos o bote, correndo para colocar o pé em cima. Aí era matar, tirar os pelos e assar… A melhor carne que já comi”, conta.
Cercado de espécies de roedores, de timbus e gabirus a mocós, antes abundantes na cidade, Damião não saberia identificar qual consumia. “Acho que era de esgoto mesmo. Não importava. A gente comia, tomava cana… Se tivesse hoje, comeria de novo”.
Os cerca de 40 m2 do que chama de residência resistem bravamente ao tempo e ao vento. São estacas de madeira amarradas com cipós e cobertas por lonas plásticas, em improviso. No interior, uma cama com velhos colchões “achados”, que divide com esposa e alguns gatos. O resto da casa é um palco de entulhos do lixo que lhe “pode ser útil algum dia”, coberto por uma numerosa audiência de moscas a fazer-lhes companhia. Encara com bom humor o passado, mas a feição muda quando questionado sobre o futuro. Olha para os céus e dispara. “A chuva vai chegar…”. Engole seco e chora como quem, há tempos, não lamenta a própria sorte. “Mal tenho forças para trabalhar. Não vou poder levantar a casa de novo”, diz o homem que nunca teve o rancho que sonhou.
Com as forças que lhe restam, volta para dentro de casa. A porta está tomada por enteados e seus cônjuges. Uma delas é Alessandra da Conceição Soares, 23, grávida de seis meses do quarto filho, que descansa de mais um dia de trabalho no lixão, de onde a família tira cerca de R$ 180 por mês. “Moro mais à frente, numa casa do Minha casa, minha vida. Eles não conseguiram a deles. Mãe perdeu o prazo para entregar os documentos. Na próxima ‘leva’ deve rolar”, conta. Vê quando o padrasto volta a se deitar na cama, com a mãe. Reunirão forças para um novo dia. Amanhã, chafurdarão no lixo, tais quais os ratos que um dia comeram.
DiariodePernambuco