Por Camila Balthazar
Com 38 anos de serviço público (22 deles como promotor de justiça), o procurador-geral de Justiça do Ministério Público de Pernambuco tem ajudado a construir uma história diferente para o país. Com a filosofia de atuar não apenas no efeito, mas na causa, Aguinaldo Fenelon luta para diminuir a quantidade de processos – e não somente despachá-los. Usando o gabinete apenas para pequenas reuniões e assinaturas de documentos, seu lugar é nas ruas. Principalmente ao lado de crianças e adolescentes, focando na educação e cortando o mal pela raiz. “Você quase não vê doutores com arma na mão, mas sim as pessoas que abandonaram a escola”, diz Fenelon, que, além da violência, culpa a falta de educação por todos os outros problemas: crimes raciais, contra a mulher, homofóbicos, lixo na rua, doenças por falta de higiene, improbidade administrativa e por aí vai. Em três anos no cargo de procurador-geral, Aguinaldo está levando o papel do Ministério Público além.
Aos 15 anos e cursando o ensino médio, Aguinaldo Fenelon participou de seu primeiro júri. É verdade que tudo não passava de uma simulação proposta por seu professor, mas foi naquele momento que o adolescente percebeu uma possível vocação para o Direito. Filho de um herói de guerra que lutou na Itália contra as tropas nazistas, seu papel no júri simulado foi o oposto: a defesa de Adolf Hitler. Mesmo com uma causa quase impossível nas mãos, Fenelon perdeu o caso por apenas um voto. “Minha tese era a de que Hitler tinha feito aquilo por amor à Alemanha, que precisava recuperar a estima após as perdas na Primeira Guerra. Não foi fácil”, lembra Aguinaldo, confessando que no fundo torcia pela própria derrota, para não ver a vitória do grande criminoso – mesmo que de brincadeira.
Mas, na hora do vestibular, outra paixão falou mais alto: ser professor. Aguinaldo entrou para a faculdade de Letras na Universidade Católica de Pernambuco, mas passados dois anos percebeu que não podia deixar o Direito de lado. Prestou vestibular mais uma vez, agora para a Universidade Federal de Pernambuco, e conciliou os dois cursos. “Concluí os dois juntos, na mesma semana. Mas me dediquei para ser professor”, afirma o quinto filho de uma família de oito, natural de Goiana, a 60 quilômetros do Recife.
A carreira docente iniciou em uma escola pública na cidade de Abreu e Lima, em 1976, atingindo o auge em Paulista, quando dirigiu o maior colégio municipal da região metropolitana na época. Lecionando língua portuguesa e literatura, o diretor assumiu o cargo com uma escola com 1800 alunos, finalizando com 2700 – seis anos depois. “Aumentei o número de estudantes, abrindo os três turnos. Fazíamos seleção, pois todos queriam estudar lá. Recebi o título de educador do ano na cidade de Paulista”, conta Aguinaldo, que paralelamente ainda pensava em advogar. Mas foi nessa época que mais uma vez ele participou de um júri, dessa vez assistindo ao julgamento do assassinato de seu assistente no colégio. “Me apaixonei pelo Ministério Público para fazer justiça. Só faço aquilo que acredito, e o advogado sempre defenderá o cliente, mesmo quando não acreditar”, explica.
Após a saída do cargo de diretor, surgiu o primeiro concurso de Oficial de Justiça que exigia o bacharel em Direito. Aprovado, ele trabalhou dois anos no Recife, até prestar o concurso de Promotor de Justiça por experiência. “Acabei sendo aprovado e fui pro Agreste Meridional, perto de Garanhuns, na cidade de Palmeirina”, diz. Foram nove anos passando por diversas cidades do interior até chegar à capital. Nesse meio tempo, atuou na política como vice-prefeito de Paulista, chegando a prefeito – época em que a legislação ainda permitia que promotores exercessem cargos políticos. “Depois saí. Entendi o meu papel e vi que o Ministério Público precisava de mim. Voltei em 2005 para a Vara de Família”, expõe Aguinaldo, deparando-se com 12 mil processos atrasados. Após uma parceria com um juiz, os mutirões começaram. “Chegamos a realizar 90 audiências em um dia só. Entrava de manhã e saía à noite. Na época ganhei até um prêmio pelo maior número de audiências realizadas por dia no país”, comenta.
O trabalho logo foi reconhecido. Fenelon recebeu o convite para assessorar o gabinete do procurador-geral na área cível, migrando para a central de inquérito, até trabalhar como secretário geral. “Quando esse procurador-geral terminou os quatros anos do mandato, no final de 2010, me candidatei à vaga. Concorri com onze colegas e ganhei com mais de 50% dos votos”, relata Aguinaldo, que teve um resultado ainda mais impressionante na sua reeleição, dois anos depois de já estar no cargo de procurador-geral de Justiça do Ministério Público (MP) de Pernambuco. Foram 80% dos votos, evidenciando a boa atuação. No dia da posse, mais de mil pessoas participaram – de associações de bairro, grupos de candomblé a igrejas.
Desde que assumiu o posto, em janeiro de 2011, três desafios regem sua rotina diária. “O primeiro deles é esclarecer que o servidor público nasceu para servir. O segundo é fazer as pessoas entenderem que a justiça só se realiza quando ela se aproxima da sociedade. O terceiro é ir às ruas – a única forma de concretizar os dois itens anteriores”, explica o pernambucano, que se indigna com a vaidade instalada nos poderes públicos, que ignoram seu papel de servidor público, ou seja, servir. “Os homens públicos precisam descer do pedestal e entender que o poder significa servir a sociedade. Quem não tem essa vocação deveria sair. Não aceito chegar a uma instituição e ser atendido com cara feia”, aponta.
Com uma proposta inovadora na história do MP, cuja missão pode ser resumida como um advogado da sociedade, defendendo os interesses públicos, Aguinaldo vai além. Já colocou em prática mais de 10 projetos que, à primeira vista, parecem fugir do escopo de trabalho do MP. Temas como educação, combate ao racismo, homofobia e craque, poluição sonora e paz nos estádios de futebol fazem parte do dia a dia do trabalho de sua equipe. “Alguns juízes e promotores gabam-se por dizer que limparam o gabinete e despacharam 50 processos em um dia. Mas e aí, o que você fez para diminuir a chegada de outros 50? Cada novo processo mostra que as políticas públicas não funcionaram”, enfatiza.
Como todo procurador-geral, ele denuncia os problemas encontrados, mas não negligencia a causa. “Conscientizamos os promotores de justiça para trabalhar nessa linha de construir. Antes de punir, pensar em construir cidadania”, afirma. Para isso, uma parceria entre o Ministério Público e o Tribunal de Contas viaja para as cidades do interior ministrando cursos para os prefeitos, que muitas vezes cometem crimes de improbidade administrativa por puro desconhecimento. “Dessa forma, só os que são realmente desonestos cometerão crimes. Não me sinto feliz em denunciar alguém que não foi orientado”, relata Aguinaldo, que também atua fortemente na aproximação dos poderes públicos, facilitando o diálogo entre todas as partes. “Vou pras ruas discutir com o povo e saber o que está acontecendo. Se um posto de saúde não está funcionando, por exemplo, intermediamos o assunto com o prefeito. Caso o problema não seja resolvido, entramos com ações. Mas só judicializamos se não há entendimento”, elucida.
Mas a grande paixão do ex-professor ainda é a educação de crianças e adolescentes. Muitos de seus projetos focam nesse público, que recebe visitas nas salas de aula abordando temas como drogas, respeito à mulher e destino correto do lixo. “Tudo começa na infância. Educação é o caminho. O maior erro desse país é não investir nisso. A evasão escolar é a maior causa de violência”, aponta Fenelon, defendendo melhores condições nas escolas públicas e remuneração adequada aos professores. Faltando um ano para a conclusão do seu segundo mandato, o procurador-geral planeja deixar o cargo e voltar a ser promotor. Se possível, conciliando as duas vocações: a Promotoria de Justiça de Defesa da Educação.
Segundo ele, o país estaria muito mais adiantado se instituições públicas e privadas se encontrassem uma vez por mês para discutir um plano de paz. Utopia ou não, se ao menos os três poderes públicos dialogassem já seria uma grande conquista. “As instituições precisam voltar a conversar. Eles não têm nem o telefone um do outro. Só se encontram em posse e dia de festa. O Estado precisa conversar, a escola, a igreja”, almeja Aguinaldo, na incansável busca de mudar a cultura do “errou, puniu”. “Por que não traz a pessoa e tenta perdoar? Não sou homem santo, não. Tenho meus pecados. Mas pago com gestos bons”, conclui o procurador-geral, contrariando no dia a dia o ditado que prega que uma andorinha só não faz verão.
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