06 outubro 2013

Dramas: Moradores do mangue ainda vivem no tempo de Josué de Castro


Muita coisa mudou desde que Josué de Castro mostrou ao mundo, no romance Homens e caranguejos, lançado em 1967, a miséria e os flagelos vividos por quem é refém da fome. Mas há pessoas que vivem do mesmo jeito. São os sobreviventes do mangue. Em pleno século 21, choram e sofrem calados por falta de assistência básica. Passam despercebidos diante do crescimento econômico de Pernambuco e sua capital, o Recife.

Escondem-se atrás dos números vistosos, nas emboscadas das estatísticas que revelam melhoras mas não fotografam os rostos daqueles que, a despeito de tudo, ainda vivem do lado mais rasteiro dos gráficos. Os rostos de Josiane, Maria, José e Miguel figuram entre os dos 20,9% da população brasileira (acima de 200 milhões de pessoas, de acordo com dados do IBGE de julho) que admitem que pode faltar dinheiro para comida.
Durante uma semana, o Diário entrou  nos manguezais e visitou comunidades ribeirinhas da capital. Encontrou personagens de Josué de Castro nos lugares mais miseráveis da cidade.

Viu meninos brincando atolados de lama até o peito. Os mais velhos avistavam a fotógrafa e faziam mungangas, à la Chico Science. Verdadeiras esculturas de lama. Hoje, a quatro dias da data em que o cientista social completa 40 anos de morte, a voz audaciosa do cientista e, sobretudo, do homem que estudou a fome conduz as páginas desta reportagem.
Uma herança que vem dos ancestrais
Os sobreviventes do mangue começaram a trabalhar ainda crianças. Aos nove anos, José Barbosa da Silva, 59, saiu com os pais de Ouricuri, no Sertão, a 623 quilômetros do Recife. Perseguido pela miséria, fugiu da seca, mas não da pobreza. Não frequentou a escola. Chegando à capital, não sabia da dureza que a vida lhe reservava no futuro, tempo voraz que engoliu sonhos. As brincadeiras de infância foram trocadas pelo duro trabalho nos manguezais.
Seu José segue faminto, meio século depois, com a carência cotidiana e pontual que devora o intestino e a vontade. Os pais construíram um mocambo na Ilha de Deus. Invadiram o terreno que não é de ninguém. É da maré. Quando enche, estira e se espreguiça, alaga a terra toda. Quando baixa e se encolhe, deixa descobertos os pontos altos da miséria.

Com o passar do tempo, conheceu a primeira mulher, Maria Francisca. Tiveram um filho. Ela sumiu quando o menino ainda estava na barriga. Hoje, mora em São Paulo. Risonete Marciolino, abandonada pelo marido e mãe de cinco filhos, foi outro romance. Os dois criaram os rebentos com o dinheiro da venda dos caranguejos tirados do mangue. As crianças da segunda mulher desciam na lama e catavam cordas do crustáceo, baldes de sururus, siris a perder a conta e peixes aos milagres.
Risonete se foi, vítima da esquistossomose. “Passou para o andar de cima”, diz Seu José. Alexandra Marciolino da Silva, 34, umas das filhas da falecida, é a única que continua morando com o caranguejeiro. Teve um filho, Lucas, 10, com o ex-marido. Sustentou o menino indo todos os dias ao mangue: R$ 25 por semana. De enteada, passou a esposa. Juntou as camas com o ex-marido da mãe. Eles veem Lucas crescer e trabalhar na maré. Quer seguir os passos do padrasto. “A gente tem que aprender a tirar do mangue o que é sustança”, ensina Alexandra. “Eu já aprendi com minha mãe, que aprendeu com a dela, que aprendeu mais atrás ainda, e o meu filho já faz melhor do que eu”.
Fome na Ilha de Deus
Seis da manhã de uma segunda-feira de setembro. Sob a luz amarelada que ilumina o barraco, Josiane Barros da Silva, 29 anos, prepara o café. Os filhos ainda dormem. São três, mulatos como os pais: Diogo (9), Rafael (12) e Dafne (4), deitados na cama, em diferentes direções. Na parede de madeiras velhas, um relógio quebrado serve como decoração. As divisões entre os cômodos da casa (dois, apenas) são as cortinas de lençóis gastos. O nome do lugar era Ilha sem Deus, mas uma aliança entre católicos e evangélicos resultou no batismo de Ilha de Deus - um pedaço de terra espremido entre Boa Viagem e Imbiribeira. Tentaram ver se mudavam a sorte, a direção do vento, o destino. Mudou nada. Parece eterna a luta contra a maré. Como mãe, Josiane zela pelos valores dos rebentos enquanto crianças humildes, mas dignas do mesmo direito de outras. A batalha é uma prova diária de como é a vida no manguezal.
Josiane cria os filhos com o dinheiro que tira da venda de crustáceos: R$ 15 por semana. Perdeu o Bolsa-Família porque os filhos frequentam pouco a escola. Cozinha sentada porque reclama de dor nas pernas. Vê-la movimentando-se pelo chão faz lembrar a coreografia dos homens-caranguejos na lama, rastejando atrás de alimento. Existem dias que no velho fogão a lenha só tem cinza no borralho e panelas vazias. Quando acontece, come caranguejo. Cria os filhos do mesmo jeito que os pais a criaram. “Aqui, tenho o sustento dos meninos garantido. É só tirar bicho do mangue e a comer”. O relógio quebrado parou no tempo, como a própria miséria, e o ponteiro se recusa a andar.

Mesmo com a experiente coreografia que imita o bicho da lama, é vencida pelas dificuldades. Engravidou aos 16 anos. O primeiro marido, pai de Diogo e Rafael, sumiu quando o mais velho ainda estava na barriga. O atual, José Edimilson Araújo da Silva, 32, está desempregado. Josiane é que sustenta a família. “Queria dar aos meninos o que nunca tive”, desabafa. O monstro da fome amansou, comparado ao tempo em que Josué de Castro o revelou para o mundo. Mas está longe de ser domado.
Saúde perdida na lama
O contato com a água suja e a exposição ao sol também faz parte do cotidiano dos sobreviventes do mangue. Estava perto do meio-dia quando a reportagem encontrou Maria dos Prazeres de Souza, 54, catando marisco. Nem tinha almoçado ainda. Corria contra o tempo para poder entregar a mercadoria na hora certa. Moradora de Brasília Teimosa, no Recife, adquiriu câncer de pele e disidrose (pequenas bolhas de pus) nas mãos e nos pés. Mãe de cinco filhos, perdeu um para o crime. Criou os restantes com a venda de marisco, ostra, caranguejo e sururu.
O tumor está localizado no lado direito do rosto. No Hospital Oswaldo Cruz, a recomendação da médica a Maria dos Prazeres é evitar o sol. “Se eu não trabalhar, quem vai me sustentar? O jeito é ir assim mesmo”. No fim do ano passado, recebeu outra má notícia: outro tumor surgiu, do lado esquerdo do rosto; Agora, entre idas e vindas ao hospital, tornou-se, mais uma vez, refém da saúde pública. O irmão, filho do mangue, também é vítima da doença.

Durante a conversa, o choro de Maria dos Prazeres soou como um baque. Não era um choro de humilhação, de tristeza por viver nestas condições. De quem se acomoda porque Deus quis. Eram lágrimas de indignação e vergonha porque assim o homem quis. O flagelo, imposto a ela, não é obra divina. É humana. O que ela se recusa a aceitar.
A poucos metros dali, mora, num vão de dois cômodos, Dona Edileusa, 57. É a marisqueira mais antiga de Brasília Teimosa. Começou na vida ainda criança. São 53 anos de mangue. Escrava da esquistossomose (mal que matou o pai há mais de duas décadas) e de verminoses, já perdeu as contas de quantas vezes os dedos das mãos ficaram em carne viva por causa do árduo trabalho. “Leu”, como é conhecida, ainda convive com o caramujo transmissor do xistossomo. “Medo de ter algo pior eu tenho, né? Mas fazer o quê? Preciso sobreviver”. Nos mangues que cercam Brasília Teimosa, ter um pouco do sobrenome da comunidade refletido no próprio comportamento é arriscado. Mas, para muitos, absolutamente necessário.
Vida e morte lado a lado
Dezessete de agosto de 1994, sete da manhã. Laura Ernesto da Silva acordou sorridente, como nos outros dias. Serelepe como toda menina travessa, pulava na cama sustentada por tijolos. Era dia de festa, mesmo sem ter muito o que comemorar. A pequena estava completando cinco anos de idade. Os pais, Miguel Ernesto da Silva, 58, e Maria Antonieta da Cruz, 46, nem imaginavam que, poucas horas depois, por fatalidade ou querer do destino, o mesmo mangue que dava o sustento lhe tiraria a filha. Laura caiu na maré e morreu afogada. Era a primeira filha do casal. A perda tirou o juízo de Antonieta: precisou ser internada sete vezes num sanatório.
Miguel Ernesto veio de Tabira, no Sertão, a 405 quilômetros do Recife, em busca de comida, de melhor qualidade de vida. Construiu um barraco de três cômodos na Ilha do Leite, às margens do Rio Capibaribe. Conheceu Maria Antonieta. Formou família. Tiveram sete filhos. “Passei muita fome no interior. Teve um dia que não aguentei mais e vim embora pra cidade”, conta Miguel. Catou muito caranguejo para sustentar as sete bocas.

No momento da tragédia, Maria Antonieta estava em casa. Cuidava dos serviços domésticos. Miguel encontrava-se no quintal do barraco, cercado por mangue, junto com a menina. Enquanto andava, Laura o seguia. Mas existiu um momento em que a pequena não o acompanhou. Sem saber, Miguel continuou. Quando percebeu, Laura já havia sumido. Durante as buscas, viu o corpo da criança boiando na maré. Tentou socorrê-la, mas não conseguiu. Era tarde demais. Laura já deu entrada no Instituto de Medicina Integral Professor Fernando Figueira (IMIP) sem vida. “É uma dor que prefiro esquecer. Foi minha primeira filha. Ela era linda demais”, lamenta. O corpo foi enterrado no Cemitério de Santo Amaro, no dia seguinte à tragédia. Poucos dias depois (eram sete da manhã novamente), Miguel, sem escolha e entregue às irônicas surpresas do mundo, foi obrigado a buscar sustento naquele mesmo lugar, o mangue: tão abundante de vida, mas ainda com o cheiro sombrio da morte.

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