A morada de Amanda (nome fictício) parece segura. Possui um silêncio particular, destinado somente aqueles envoltos pelo líquido amniótico das barrigas de suas mães. Vez por outra, o conforto daquele universo é quebrado. A mãe de Amanda, chama-se Alessandra (também fictício) e tem 27 anos. Ela não sabe calcular com exatidão há quanto tempo observa o bebê crescer no seu ventre. Vive em situação de rua, na Aurora, e entre seus companheiros estão o crack, o álcool e o cigarro. A dependência das drogas e a miséria lhe afastam do alimento e do sono. Quando a pedra acaba e o vício exige reação rápida do corpo, prostitui-se. No interior daquela barriga gestante, Amanda se movimenta. Dá sinal de vida à mãe.
A segunda geração de vítimas do crack está em plena construção. São crianças gestadas e paridas em meio ao recente fenômeno da feminilização do uso de drogas. O mesmo aconteceu no início da década de 1990 em relação à Aids. “Com os avanços das mulheres na busca pelos seus direitos sociais nas últimas décadas, elas ficaram em pé de igualdade com os homens, não só passando a ocupar espaços antes restritos a eles, como também passaram a apresentar os problemas de saúde que eram significativamente mais prevalentes entre o público masculino, como as doenças cardiovasculares e a dependência química”, explica o psiquiatra Ricardo Torresan, da Faculdade de Medicina de Botucatu - Universidade Estadual de São Paulo (UNESP), especializado em dependência química.
A única pesquisa brasileira de grande porte sobre uso de cocaína e crack no país, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), revela que, entre as mulheres adultas, 0,3% afirmaram ter fumado crack no último ano. O levantamento aponta outros dados alarmantes quando analisada a questão de gênero. Apesar de os homens ainda liderarem a taxa de uso dessas drogas, entre as mulheres usuárias, o índice de dependência é de 54%, contra 46% do sexo masculino.
Estudos já haviam mostrado que os hormônios femininos (principalmente o estrogênio) podem explicar essa maior vulnerabilidade para o vício. “Este hormônio potencializa os efeitos reforçadores da droga, tornando-a mais prazerosa e, portanto, aumentando seu poder de dependência”, explica a coordenadora da pesquisa, a psicóloga Clarice Madruga. No Imip, a mistura perigosa entre o uso de crack, mulheres e gestação começou a chamar atenção este ano. A cada quinze dias, pelo menos uma grávida usuária da pedra - muitas vezes sob efeito da droga - é internada para ter bebê.
Ainda é cedo para apontar com exatidão os efeitos do uso do crack na saúde, principalmente do feto, pois a exposição à droga é considerada recente no Brasil. Calcula-se que os primeiros sinais da epidemia começaram a se mostrar há cerca de 13 anos. Médicos, no entanto, lançam hipóteses a partir da experiência diária. Afirmam que os bebês podem nascer prematuros, com baixo peso, irritadiços, com tremores, além de apresentarem riscos para distúrbios cardiovasculares e de abstinência da droga. No futuro, podem apresentar baixo crescimento, retardo mental, déficits motores e cognitivos e transtornos do comportamento. Além dos efeitos na saúde física, correm sérios riscos de serem afastados de suas mães dependentes ainda muito jovens. Trata-se de uma epidemia ainda sem cura, que agora vitima o elo mais fraco da cadeia da dependência, os bebês.
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